O que enfrentamos, de fato, para enraizar o objeto?

COLETÂNEA de MINITEXTOS sobre o NUCLEAPE COMO GRUPO OPERATIVO DE PESQUISA
Glossário conceitual/metodológico
Foco no plano estratégico para permanência e êxito dos estudantes/IFF – Portaria IFF Nº 912 03/09/2015

IV  O que enfrentamos, de fato, no em torno do objeto?
(Inquietações, controvérsias, conflitos, dilemas e mal entendidos)


8 - EXCESSO DE DISCURSO X ESCASSEZ DE PRÁTICA
(1000 publicações sobre evasão versus 100 sobre permanência)

NÓVOA, Antonio. Os Professores na Virada do Milênio : do excesso dos discursos à pobreza das práticas - Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 11-20, jan./jun. 1999 – trechos selecionados e adaptados por Gerson Carmo.

 Nos dias de hoje, há uma retórica cada vez mais abundante sobre o papel fundamental que os professores serão chamados a desempenhar na construção da “sociedade do futuro”. Um pouco por todo o lado, políticos e intelectuais juntam as suas vozes clamando pela dignificação dos professores, pela valorização da profissão docente, por uma maior autonomia profissional, por uma melhor imagem social etc.

 Nos programas de ação política ou nos discursos reformadores, nos documentos dos “especialistas” da União Européia ou na literatura produzida pelos investigadores, reencontramos sempre as mesmas palavras, repetidas uma e outra vez, sobre a importância dos professores nos “desafios do futuro”. Ou por que lhes cabe formar os recursos humanos necessários ao desenvolvimento econômico, ou por que lhes compete formar as gerações do século XXI, ou por que devem preparar os jovens para a sociedade da informação e da globalização, ou por qualquer outra razão, os professores voltam a estar no centro das preocupações políticas e sociais.

 Recentemente, várias organizações internacionais têm falado da nova “centralidade” dos professores, referindo-se mesmo à necessidade de “trazer outra vez os professores para o retrato”. O meu artigo procura analisar esta realidade discursiva, questionando as suas razões e contradições. O subtítulo desvenda a linha central da argumentação: Do Excesso dos Discursos à Pobreza das Práticas.

 Não pretendo, obviamente, sugerir uma oposição entre “discursos” e “práticas”, como se estivéssemos perante dois mundos distintos. Bem pelo contrário. Quero demonstrar de que forma os “discursos” induzem comportamentos e prescrevem atitudes “razoáveis” e “corretas” (e vice-versa). Mas quero mostrar, também, o modo como eles constroem uma idéia de profissão docente que, muitas vezes, não corresponde à intencionalidade declarada.

 A chave de leitura do artigo é o par excesso-pobreza, aplica do à análise da situação dos professores:

• do excesso da retórica política e dos mass-media à pobreza das políticas educativas;

• do excesso das linguagens dos especialistas internacionais à pobreza dos programas de formação de professores;

• do excesso do discurso científico  educacional à pobreza das práticas pedagógicas;

• do excesso das “vozes” dos professores à pobreza das práticas as sociativas docentes.


8.1  EXCESSO DE DISCURSO SOBRE A EVASÃO: POR QUÊ TÃO POUCAS PUBLICAÇÕES SOBRE PERMANÊNCIA ESCOLAR

CARMO, G. T. do; CARMO, C. T. do. A permanência escolar na Educação de Jovens e Adultos: proposta de categorização discursiva a partir das pesquisas de 1998 a 2012 no Brasil. Education Policy Analysis Archives, v. 22, n. 63, 2014. Dossiê Educação de Jovens e Adultos II. Editoras convidadas: Sandra Regina Sales e Jane Paiva, v. 22, p.1-45, 2014. – trechos selecionados e adaptados por Gerson Carmo.

 No Brasil, as publicações sobre evasão e termos correlatos no título podem ser contada aos milhares. Por exemplo, Bragança (2008, p. 21) realizou um estado da arte sobre publicações com essa temática, no período de 1996 a 2007, cuja “meta de mil artigos foi pensada pelo grupo de pesquisa como sendo um número razoável e representativo da produção sobre o assunto, considerando o período de tempo de dez anos aproximadamente”. Entretanto, nosso catálogo sobre permanência registra apenas 13 publicações encontradas nesse mesmo período. Ou seja, nesse período, considerando os dados indicados, havia 77 vezes mais publicações sobre evasão do que sobre permanência. De um modo geral, tais publicações se apresentam de três formas básicas: 1- estratégias para combater e/ou reduzir a evasão; 2- diagnósticos e explicações sobre motivos e causas da evasão; 3- estados da arte de pesquisas sobre a evasão (CARMO; CARMO, 2014).

 Ao contrário, no Brasil, ainda são invisíveis as publicações cuja expressão permanência escolar (e correlatos) se encontra no título, no resumo ou nas palavras-chave. No período de janeiro de 1996 a dezembro de 2016, em qualquer modalidade de educação ou nível, foram encontradas 103 publicações, das quais o maior percentual (41%) se refere à modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) ou programas afins.

 Um dos destaques nesse estudo bibliográfico é que houve um crescente uso da expressão permanência escolar para representar uma ruptura em relação ao discurso sobre a evasão escolar. Além disso, há o fato de que 86% das publicações sobre permanência escolar estavam concentradas em nove anos (2008 a 2016) – em relação a 14%, nos doze anos anteriores (1996 a 2007).

 Essa ruptura com o discurso sobre a evasão parece necessária aos pesquisadores com o objetivo de fazer algo diferente ou contrário ao que vem sendo pesquisado na escola, um discurso que não leva a nada e que, por isso, pode ser “trocado” por outro mais “otimista”.

 Por exemplo, Noro (2011, p. 24), em sua pesquisa no Curso PROEJA - Técnico em Administração, no campus Sapucaia do Sul do IFSUL Rio-Grandense, faz uma opção por um foco otimista, destacando o termo com aspas:

No primeiro ano de implantação de nosso curso PROEJA surgem muitas inquietações relacionadas ao alto índice de evasão de alunos, sendo que começamos a refletir em conjunto sobre suas possíveis causas e a relação da evasão com a forma de acesso ao curso. Mas como pretendia realizar uma pesquisa “otimista”, preferi focalizar minha pesquisa na permanência, isto é, parodiando Jaqueline Moll (2010, p. 135) nos estudantes que “entram, permanecem e aprendem” [grifo nosso].

 No próximo exemplo, Lenskij (2006,  p. 16) escolhe o termo metamorfose para simbolizar a mudança que ocorreu em suas preocupações sobre a evasão escolar:

Agora, como aluna do Mestrado em Educação, ao reler os [meus] escritos anteriores à luz de um contexto político nacional e internacional de luta pela proteção dos direitos humanos, e ações afirmativas do direito à educação, minhas preocupações anteriores se metamorfosearam. De dados estatísticos que demonstravam a exclusão na escola, minha preocupação se deslocou para questões relativas ao direito à permanência na escola [...]. Da investigação sobre a evasão – da ordem do quantitativo, como expressão da exclusão escolar e social – passei para a outra ponta desta dualidade, a permanência na escola, com a intenção de conhecer as estratégias utilizadas pelos operadores do ensino para cumprir o princípio constitucional do direito à educação [grifo nosso].

 Conforme Carmo e Carmo (2014, p. 16), dentre as poucas publicações encontradas sobre permanência, de modo geral, estas se propõem a: 1- anunciar, de forma direta, a escolha de outro caminho, justificando-a de formas variadas, mas a partir da negação do caminho existente; 2- constituir nichos de sentido, como maneira de delimitar domínios de práticas pedagógicas e de gestão sobre permanência escolar; 3- perceber que o direito à educação de qualidade é um referente que corresponde e se adapta melhor à expressão “garantir a permanência” do que àquela que diz “reduzir a evasão”.

 A partir da constatação dessa significativa diferença quantitativa e qualitativa, indagamos: por que há tão poucos estudos sobre a permanência escolar, se desde a LDBEN Nº 9394 de 1996, em seu Art. 3º Inciso I, ela está legitimada institucionalmente pelo “princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”? E, na direção contrária, por que tantos trabalhos popularizaram a expressão “acesso e permanência na escola” como se fosse uma palavra composta de significado único, sem dar visibilidade especificamente à permanência? E, finalmente, por que a visibilidade dessa expressão – permanência escolar – não interessou à Academia por mais de duas décadas, após 1996, e a da evasão escolar sim, se esta última não consta em qualquer artigo da LDBEN vigente?

9- LEITURA NEGATIVA (DENÚNCIA)  X LEITURA POSITIVA (ANÚNCIO)
(a prática do olhar [pro]positivo de Bernard Charlot)

CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000. - trechos selecionados e adaptados por Gerson Carmo.

 A teoria da deficiência sociocuItural pratica uma leitura "negativa" da realidade social, que ela interpreta em termos de faltas. A análise da relação com o  saber implica ao contrário uma leitura "positiva" dessa realidade: liga-se à experiência dos alunos, à sua interpretação do mundo, à sua atividade. A leitura negativa reifica as relações para torná-Ias coisas, aniquila essas coisas transformando-as em coisas ausentes, "explica" o mundo por deslocamento das faltas, postula uma causalidade da falta. Esse tipo de leitura gera "coisas" como o "fracasso escolar", "a deficiência sociocultural".

 O que é a leitura "positiva"? Praticar uma leitura positiva é prestar atenção também ao que as pessoas fazem, conseguem, têm e são, e não somente àquilo em que elas falham e às suas carências. É, por exemplo, perguntar-se o que sabem (apesar de tudo) os alunos em situação de fracasso - o que eles sabem da vida, mas também o que adquiriram dos conhecimentos de que a escola procura prover-Ihes.

 Nesse sentido, trata-se mesmo de uma leitura "otimista", para quem fizer questão de usar essa palavra. O essencial, porém, não reside aí. A leitura positiva é antes de tudo uma postura epistemológica e metodológica. Praticar uma leitura positiva não é apenas, nem fundamentalmente, perceber conhecimentos adquiridos ao lado das carências, é ler de outra maneira o que é lido como falta pela leitura negativa.

 Assim, ante um aluno que fracassa num aprendizado, uma leitura negativa fala em deficiências, carências, lacunas e faz entrar em jogo os processos de reificação e aniquilamento [néantisation] que analisamos, enquanto que uma leitura positiva se pergunta "o que está ocorrendo", qual a atividade implementada pelo aluno, qual o sentido da situação para ele, qual o tipo das relações mantidas com outros, etc.

 A leitura positiva busca compreender como se constrói a situação de um aluno que fracassa em um aprendizado e, não, "o que falta" para essa situação ser uma situação de aluno bem-sucedido. Um aluno fracassa, atrasa-se em sua escolaridade, vê-se em dificuldades na escola: pode-se explicar isso a partir do que ocorreu com ele, do que ele fez, do que ele pensou e não, apenas, a partir do que não ocorreu com ele, do que ele não fez, do que ele não pensou? Trata-se, insisto, de explicar de outra maneira uma situação na qual o aluno efetivamente fracassou, e não, ou não só, de invocar, de modo "otimista", o fato de ele ter tido sucesso em outra situação ou em outro momento. A leitura negativa é a forma mais comum, considerando os lugares de onde falam, como os que se sentem superiores vêem os que lhes são inferiores. Dessa forma, em toda essa abordagem epistemológica e metodológica está em debate a própria compreensão de lugares superiores e inferiores de onde se fala.

 Procurar compreender o fracasso como uma situação que advém durante uma história é considerar que todo o indivíduo é um sujeito, por mais que o lugar de onde fala seja considerado inferior.  Um sujeito que interpreta o mundo, resiste à atribuição inferior de sua fala, afirma positivamente seus desejos e interesses, procura transformar a ordem do mundo em seu próprio proveito. Praticar uma leitura positiva é recusar-se a pensar aquele considerado inferior como um objeto passivo e completamente manipulado, até, inclusive, em suas disposições psíquicas mais íntimas.

10- ABRINDO AS CAMADAS DA CEBOLA X ESCOLA COMO CAIXA PRETA
 (o clima escolar como fator de maior impacto na aprendizagem)

GOMES, Cândido Alberto. A Escola de Qualidade para Todos: Abrindo as Camadas da Cebola. Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 281-306, jul./set. 2005.  – trechos selecionados e adaptados por Gerson Carmo.

 A estrutura peculiar dos sistemas educacionais se assemelha a uma cebola, com sucessivas camadas que influenciam a aprendizagem. Assim, se destacam despesas, instalações, tempo letivo, professores, clima e gestão escolares, efeitos dos colegas, alocação da matrícula e do espaço, ações que contribuem para a efetividade na sala de aula e a formação de turmas. Portanto, é possível atuar sobre os fatores intra-escolares, no seu âmbito de influência, que têm papel mais amplo nos países em desenvolvimento.

 A estrutura da escola e do sistema educacional foi por muito tempo comparada a uma caixa preta, que processava insumos e oferecia resultados à sociedade. Este modelo mais simples parece hoje incapaz de refletir a complexidade do real. Eles estão muito distantes de uma empresa, com estrutura piramidal, onde as ordens passam de escalão a escalão. Ao contrário, os fatos se sucedem diferentemente, de tal modo que uma metáfora útil seria a da cebola.

 De fato, o sistema educacional está dividido em camadas: primeiro, abrem-se as das diversas redes, depois de órgãos gestores regionais e locais; em seguida, as diferentes escolas e, nestas, as diversas turmas, com os seus variados professores e, por fim, os grupos de alunos, com adesão maior ou menor aos objetivos da escola. Desta forma, orientações e normas não passam com facilidade de uma para outra camada.

 O clima escolar - As escolas bem sucedidas e as mais e menos bem sucedidas, nos estudos e constatações que se baseiam em grande parte na análise qualitativa, destacam-se pelo clima escolar e o clima da sala de aula. As conclusões convergem para uma atmosfera de encorajamento, altas exigências, tratamento pessoal, liderança – do diretor, que tem papel estratégico, e do corpo docente –, cordialidade, disciplina, relações mais próximas com a família e os alunos e, parcialmente em consequência disto, apoio dos pais.